Fagulha estelar
Fui partida em pedaços, dividida em metades gerais, como se a cura nunca me fosse permitida.
Talvez eu devesse ser menos generalista com a doença que confunde meu discernimento e me arrasta para os julgamentos alheios.
Não consigo identificar as fumaças tóxicas das relações; sempre me desfaço em contradições, afogada na decepção com os outros — e comigo mesma.
O que eu poderia confessar à terapeuta? Que a angústia me acompanha desde a infância, desde os primeiros sopros da vida. Que cedo senti o vazio se instalar dentro de mim, um oco que nunca se preencheu. Que sempre me percebi desalinhada, desajustada, um corpo intruso em um mundo sem sentido.
Passei anos tentando dar significado à minha existência, me agarrando a frases feitas que só enfeitavam minha superficialidade. Mas a profundidade, o mistério, o subconsciente... eles sempre voltavam para me buscar. Em sonhos, em percepções súbitas, em vozes que ecoavam durante as noites em que me embriagava.
Eu vi — com meus próprios olhos — a insanidade tomar forma. Vi mortos cochichando ao meu ouvido, cada palavra atropelada por minhas paranoias, cada delírio moldado por disfunções internas.
Não tive tempo para me organizar. Carregava ainda o ímpeto feroz de não me submeter a quem dizia ter autoridade. As regras hipócritas dos que cospem moral e se lambuzam em sua própria sujeira não me importavam.
E então me rendi ao ansiolítico. Talvez ele me ofereça neutralidade diante do excesso de mundo que sinto. Uma amiga querida me disse que os sensíveis são engolidos pela vida... e eu me vi engolida pelas minhas próprias incongruências.
Talvez meu cérebro tenha vindo com falhas, um pedaço faltando desde o ventre da minha mãe. O remédio talvez apague esse excesso. Talvez me roube o poder de sentir.
Não fui condenada. Eu mesma me conduzi a ter sentimentos demais, em um mundo onde apenas o intolerante é tolerado. Onde falsidades, máscaras e maldizeres recebem reverência, enquanto a autenticidade precisa ser embrulhada em saco preto, como diria minha conselheira mais terna.
Talvez ser autêntica custe caro demais — custe o emprego, as relações, a própria sanidade. Talvez eu precise vestir a fantasia da lucidez para receber admiração. Ou amor. Talvez eu precise encenar meus medos e fingir que eles são apenas ecos de uma infância ferida.
Talvez eu não tenha tempo de viver minhas dores. Talvez meu pulso vivo seja exagerado demais para um mundo capenga de status.
Então, sigo vivendo essa vida forjada de solidão, porque viver parece ser apenas isso: conviver com falsidades e mentiras.
Encarar que somos tão tolos quanto animais cegos, instintivos e famintos.
Perceber que não sabemos absolutamente nada, mas inflamos a boca com razões e certezas que soam ridículas.
Conduzimos morais líquidas que escorrem ao menor desafio, revelando presas e garras como gatos acuados.
E eu? Eu não sou diferente. A única certeza que coleciono é que me encontro suspensa — no meio dos mundos.
Espírito viajante, talvez me refazendo em meio a destroços, sem referências, aceitando o ser humano que sou.
Mais doente e mais saudável do que muitos. Mais crua na percepção de que a vida é exatamente isso: atravessada, estúpida, tantas vezes sem sentido ou certeza alguma.
Talvez o alívio do foda-se chegue. Talvez o propósito esteja justamente em não saber.
O que é, o que foi — até que um dia tudo renasça como estrela que explode nos cosmos e se torna apenas fagulha estelar.
E que, por fim, a estrela brilhe.
Não pelo entendimento filosófico ou profundo.
Mas simplesmente porque é.
Brilhante e chocante. Misteriosa e viva.

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