Sou numa noite, espectro.

Não sou do seu clã. Não caibo aqui. Nem ali. Sou um espectro entre mundos, um esboço desalinhado no traço fino da conveniência. Não vim para caber no seu suposto querer. Sou do toma lá, dá cá—mas minhas moedas são farpas e meus trocos, facas cegas.

Não mereço seu tempo, seu olhar... Muito menos sua disposição. Meu reflexo nem sequer vale o espelho em que se deforma. Nunca vali.

A fuga sempre me seguiu como sombra leal, sussurrando promessas de esquecimento. Se não corro, afundo. Se fico, me afogo. Melhor ir, antes que me entupa de ilusões baratas vestidas de amor, esses trajes de segunda mão que sempre caem mal no corpo da verdade.

Nasci com uma navalha entre os dedos, aparando excessos, cortando sentimentos envenenados. Separando a carne podre da fantasia romântica. Mas quem sou eu? O que são minhas palavras, senão ecos surdos de um pedido de socorro que ninguém ouve?

Buscando o salvador da minha pátria.
Buscando o salvador da minha libido, soterrada sob camadas de ódio e medo. Distorcida em migalhas, como o pão mofado que o rato largou no meu leito.

Ah, esse rato… Um verme encharcado de promessas fáceis, lambendo o rastro da sujeira que espalha. Mas não foi ele que me contaminou. Eu já estava contaminada. Porque é isso que os grandes machos fazem—não criam, apenas corrompem.

Os bonzinhos. Os príncipes em busca de suas princesinhas de porcelana, frágeis e sem rachaduras. O calabouço onde aprisionam sua própria ineficiência. O homem que nem sabe gozar.

Definir minha vida por suposições me asfixia. Como se nossa existência fosse um tributo a ser pago. Mas me pergunto: a quem devemos? Vale a pena doar-se à vida, quando meu útero grita por descanso? Quando meu corpo, esse campo de batalhas silenciosas, só quer cessar a guerra?

Senti cada dor conforme sua entranha me invadia, e logo vi: aquilo não era desejo. Era doença disfarçada de vicio. Medo travestido de necessidade. Vício em sobreviver. Padrões que corroem, que esmagam, que humilham.

Mas seguimos, nos apertamos, nos dobramos, tentando caber. Mas não pertencemos ao clã. O clã dos merecedores. Não importa o quanto tentemos nos fantasiar de boas moças, quietinhas e caladas. No fim, quem somos, senão mulheres histéricas e mal amadas? Mal comidas? Não é?

Deixa a gente gritar.

É o que fazemos de melhor.
Gritar até a garganta rasgar.
Até que nossa raiva preencha os ouvidos surdos de quem nos julga sem saber nomear.

Eles odeiam porque não sabem definir. Odeiam porque não sabem amar. Odeiam porque não sabem criar vida.

Querem encaixar o caos em molduras frágeis, como se pudessem descrever uma rosa florescendo com meia dúzia de verbos banais.

Querem sentido.

Mas isso aqui não significa nada.

E ainda assim, seguimos nos defendendo.
Nos defendendo dessa personagem de novela barata.
A mocinha bem-comportada ou a malvada insaciável.

Não somos nenhuma delas.
Nunca fomos.


"Sou numa noite, espectro
Sou um sufoco de anseios
E o meu peito se assombra
Com o perdão da palavra

Esse meu grito suicida
A corroer as entranhas
Deixo queimar"

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