Capítulo 1: Quando as estrelas apagaram
Naquele dia, as estrelas pareciam ter se apagado antes do entardecer. Fomos para a festa na empresa do meu pai, um evento que deveria ser uma celebração, mas para mim, parecia o prelúdio de uma tempestade que eu já pressentia. Desde que me entendia por gente, sempre fui sensível às dores ao meu redor, e naquele momento, a dor de minha mãe era palpável, como uma sombra densa, pairando sobre nós. Meu pai, imerso no álcool e no ciúme, tentava preencher seu vazio flertando com outras mulheres à vista dela, enquanto eu fingia não ver. Mas, por dentro, algo em mim já sabia — aquilo era apenas o começo.
Eu, com meu semblante abatido, sentia que algo estava para acontecer. A antecipação do desastre me envolvia, como um presságio silencioso, sem forma, mas inevitável. E então, quando a noite avançou, os sussurros das brigas ecoaram pelos corredores da casa. No banheiro, meu pai e minha mãe se enfrentaram como dois titãs arrastados por uma força destrutiva. Medo. O medo que senti naquela madrugada foi como uma maré que me engolfou, subindo cada vez mais, me afogando. Tive medo do meu pai, medo do que ele podia fazer. O álcool corria em suas veias como veneno, e o ciúme, um combustível inflamável, o consumia. O Natal estava próximo, mas, mais uma vez, as luzes natalinas não iluminavam minha alma — apenas jogavam sombras mais profundas.
Meu pai, com mãos trêmulas e voz descontrolada, decidiu nos trancar no quarto. Eu e meu irmão, dois reféns inocentes, aguardávamos no silêncio, enquanto o mundo, lá fora, ruía. O choro abafado dele ecoava pela casa, misturado com os ruídos surdos de móveis sendo arrastados, vozes elevadas, e a dor invisível que se entranhava em cada parede. Naquele momento, eu compreendi uma verdade avassaladora: o amor, aquele que eu acreditava ser eterno e protetor, podia ser quebrado, despedaçado, como um frágil cristal estilhaçado no chão.
Minha infância, até então, era uma fantasia. Eu era uma princesa vivendo em um castelo imaginário, onde a bondade sempre prevalecia. Mas aos 9 anos, a princesa morreu. Não houve feitiços, nem maçãs envenenadas, nem dragões para derrotar. Foi a traição, nua e crua, que rasgou o véu da ilusão. A violência, física e emocional, se instalou como uma tempestade dentro da minha casa, e tudo que era familiar se tornou estranho.
Lembro-me da sensação de destruição interna, como se o mundo dentro de mim estivesse desmoronando, tijolo por tijolo. A dor era tão grande que parecia se transformar em uma entidade própria, alimentando-se das sombras da minha mente. Meus pais, figuras que eu via como pilares, tornaram-se irreconhecíveis. Meu pai, que antes era uma figura de força, agora se transformara em algo monstruoso. Minha mãe, que eu sempre via como uma mulher de força, se tornava frágil diante daquilo, mesmo que ainda houvesse algo de indomável nela.
O conto de fadas que eu construí sobre minha família foi desfeito diante dos meus olhos. Não havia príncipes ou princesas, apenas seres humanos quebrados, lidando com suas fraquezas da pior forma possível. E o castelo que eu imaginava ser seguro se transformou em ruínas, deixando um vazio que eu não sabia como preencher.
Desde então, comecei a fugir. Não de casa, mas de mim mesma. Vesti máscaras, camadas de proteção invisíveis, me escondi atrás de sorrisos que não me pertenciam e de gestos automáticos. Não queria mais ser vista, nem sentida. Os filmes, os livros que tanto me consolavam, tornaram-se amargos. Eles mentiam. Eles falavam de mundos que nunca existiram, de felicidades que eram impossíveis de alcançar. A vida, percebi, não era um conto de fadas. Era um jogo cruel, em que ninguém me ensinou as regras.
Naquela noite, algo morreu dentro de mim. Não fui apenas eu. Minha mãe, meu pai, meu irmão — todos perdemos algo. E eu, no meio desse caos, me desfiz em pedaços, aprendendo a sobreviver, mas nunca mais a viver da mesma forma. A partir dali, comecei a carregar o peso de fugir de qualquer conflito, de me enterrar em capas protetoras para que ninguém visse a menina quebrada que eu havia me tornado.
E assim, a menina cheia de sonhos foi substituída pela sombra de alguém que ainda respirava, mas que não sabia mais como viver de verdade.
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