A Castradora de Deus
Mas, para a minha família, não. Para eles, eu deveria ter uma religião, deveria me comportar e perder o ar de moça rebelde que eu sempre tive. Eu precisava ouvir a palavra do Senhor, muito bem-quista, bem comportada e calada, como sempre, porque eram nas minhas palavras não ditas que se escondia a verdade daquele ambiente tóxico em que eu vivia.
A catequese era uma forma de domar meus instintos, de me controlar. De esconder a realidade e iludir as pessoas de que éramos uma família que acreditava em Deus, e por isso éramos abençoados. Enquanto meu pai estava desempregado há anos, minha mãe fazia boa parte de todo o trabalho sujo. Inclusive comigo!
Ela sempre me repreendeu. Sempre projetou em mim suas frustrações e medos, morrendo de medo que eu os repetisse. Sempre se comparava a mim, querendo que eu fosse melhor do que ela, mais sábia que ela, mas, ao mesmo tempo, não me dava espaço para ter um pensamento claro e fora da curva de moralismo que ela impunha: “Certo e errado”. “Moça e pirralha”.
Engraçado que esses papos de Deus duram até hoje. A falta de compreensão do que eu sinto, sendo compassiva ao que ela mesma reproduz de si. E acabamos virando sim, o que o ambiente nos torna: agressivos, burros, incompetentes, amargurados, e sem tempo para entender a realidade escondida atrás dessa ilusão enorme da contação de Deus e a queimação de todos os nossos pecados perante o todo.
Neste dia, não fui à catequese. Não quis me entupir de coisas nas quais não acreditava. Não tinha vontade. A professora era um porre, as aulas me davam sono. A moralidade daquele lugar, daquela igreja, me causava ansiedade. Tudo ali formava marginais perigosos dentro de suas próprias casas. Deus é a salvação! Ore para Deus. Será mesmo?
Por mais que eu sentisse que Deus existisse, nunca acreditei que ele fosse esse Deus que pregavam nas igrejas. Nunca acreditei que Deus fosse esse ser castigador, castrador. Nunca imaginei que ele fosse tão julgador dos nossos erros. Mas minha família acreditava, ou apenas repetia o que lhes diziam... sem se questionar. E por que a filhinha da mamãe deveria?
Não fui. Não queria. Queria assistir à minha série favorita e sentir Deus de outra forma. Queria ouvir a palavra de Deus de outra forma. Não sendo forçada a tomar uma hóstia e fingir ser uma boa menina assim que pisasse naquele lugar. Mais um sentimento reprimido, mais uma forma de calar a Thaiane que existia em mim. E minha mãe era boa nisso.
Quando ela voltou do trabalho, o caos me esperava. Ela perguntou se eu tinha ido me “catequizar” naquela igreja nojenta, que cheirava a xixi. Pois bem, não menti e disse que não. Após isso, vi minha mãe abrir o guarda-roupa e escolher a melhor forma de me punir mais uma vez. Ela escolheu a cinta de couro. A mais grossa, para punir meu erro, para acabar com minhas defesas. E, com todo o ódio das próprias repressões, me atacou sem piedade.
Ela me batia, e eu via seu ódio nos olhos. Eu via sua ânsia de me punir por não ser casta, por questionar, por não ser como ela. Ou por ter a coragem de começar a ter minha própria autonomia, coisa que ela nunca teve e nunca se libertou para ter.
Ela me batia com o ódio de um autoritário. Deixou marcas enormes nas pernas e nos braços, repetindo: “Você vai faltar à catequese?” “Você vai continuar nessa preguiça?”
Eu pedia perdão, como se estivesse pedindo desculpas a Deus pela minha imoralidade de não querer ser castrada em um ambiente doente. Pedia perdão à Deusa Mãe por tê-la decepcionado. Por ter desobedecido a grande provedora desse lar sem rumo, dessa cadeia viciosa e caótica, desse lar cheio de veneno e lugares para me matar. Que autonomia eu deveria ter com Jesus? Quem seria ele, senão meu principal guia?
Eu via, na sua força, o tamanho do ódio que ela sentia de si mesma e descontava em mim por eu buscar ser o que sou. Eu via o repúdio à liberdade de pensamento, porque ela mesma não conseguia pensar diferente. Ela mesma se castrava diante das dinâmicas sociais. Estava presa ali. Sendo a boa mãe, a boa esposa, a boa mulher. Ela, de fato, queria sair daquilo. Queria sumir. Não queria mais viver. E aproveitou minha rebeldia e autonomia para colocar sua raiva em mim.
Castradora de si mesma, sempre tentou me castrar também. “Feche suas pernas”. “Não fale desse jeito”. “Não vá embora”. “Fique aqui, comigo.”... Entupida de mentira. De raiva de si mesma, mas, afinal, não posso ficar sozinha na velhice. Afinal, é pra isso que se criam filhos, para que cuidem de nós. Para que vivam nossos sonhos.
Por isso, nunca quis ser mãe. Depositar minhas frustrações e medos em um ser humano é cruel. É falta de altruísmo. É egoísmo. “Fique aqui... Cuide da sua pobre e coitada mãe”. Deus nos protegerá e nos dará a redenção. Por nossas culpas, nossos erros. Por nosso imoralismo interno. Pela nossa falta de controle, pelos nossos instintos apagados. “Você não vai conseguir”. Quantas e quantas vezes ouvi essa frase. Elas destruíram meus sonhos. Acabaram com minha capacidade. Mas não era só isso, era o amor dessa tenra mãe que me dava tudo que não teve para aliviar a culpa de sua realidade.
Desde então, numa enorme dor interna, me formei na catequese. Fui até coroinha. Deveria ser uma moça comportada, de boa família, de boa religião. Deveria nunca me permitir errar e buscar a salvação sendo uma boa filha de Deus. Uma bela mocinha. Cheia de castração e dor interna. Cheia de questionamentos, mas sem espaço algum para duvidar da palavra da grande mãe. A agressiva, a mãe que é dócil, realizadora de "sonhos". A mãe que tudo ama e que tudo o faz pelo seu filho. Por mim? A mãe coruja. Mas, de fato, ela era uma castradora.
Deveria me sentir grata à vida, como sugere a doutrina religiosa, como sugerem aqueles que se dizem "sábios" da palavra. Deveria perdoar as formas de castração que vivi com minha mãe. Eu me calava, sem espaço para opinião. Aceitava, pois o "amor materno" sabe de tudo. Mas será que sabe mesmo? Será que essa mulher realmente me conhece agora? Ela entende a dor que carrego, apesar de suas tentativas de me moldar como a boa filha, a boa mulher?
Não quero ser vista como fraca, como a indesejável. Não posso ser a "vagabunda", a "piranha", a "traidora da família". Mas que família? Aquela que se esconde em ódio, mágoa e falsidade? A família "perfeita", cheia de rachaduras. O medo era as drogas, a gravidez indesejada, afinal, essa "boa moça" era especialista em abortos. Por sorte, minha alma bloqueou esse "presente de Deus", o tal "amor incondicional". Eu ainda não compreendia o peso da educação, da libertação e da autonomia que tanto busco.
Ela teve uma vida difícil, eu sei. E, por conta dos seus desejos sufocados, das suas emoções e mágoas mal resolvidas, ela quis me abortar. Ah, eu sei, minha querida mãe. Eu me lembro do cigarro fumado durante a gravidez. Eu o senti nos meus pulmões malformados. Eu o senti em cada veia durante o crescimento.
A mãe boazinha, aquela que faz tudo pelos filhos, só existia em cima dos seus termos. Em cima do seu condicionamento de família abençoada por Deus. Da sua castração silenciosa e barulhenta.
Depois de adulta, nunca mais voltei à igreja, nunca mais me confessei. Muito menos quis ser a mãe que gera a vida e toma respeito.
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