Ainda há algo mais
Sob a pele frágil de uma infância perdida, há feridas tão profundas que nem os olhos podem ver. Um eco de gritos e tapas ressoa nos corredores escuros do tempo, enquanto vidas escorrem como areia, escavadas pela negligência de mãos que deveriam ter sido ternas. É uma dança cruel, onde o amor deveria ser maestro, mas a melodia foi distorcida por notas de descuido. Queria poder tocar essas feridas e transformá-las em cicatrizes invisíveis, tanto nas crianças de ontem quanto na criança que ainda pulsa em mim.
Carregamos nossas dores como pedras em um poço sem fundo, empilhando-as até que se tornem parte de quem somos. Crescemos, então, sob o peso delas, arquitetando ilusões de controle, acreditando em promessas de um amanhã mais brando. Mas, no fundo, somos alquimistas sombrios, destilando nossos próprios venenos, fabricando cenários que nos consomem pouco a pouco.
A autoestima, nunca plantada no solo fértil da infância, é moldada pelo fogo do instinto de sobrevivência. Vestimos armaduras feitas de ferro e delírio, não para nos proteger dos outros, mas para enfrentar os monstros que habitam em nós mesmos. É uma guerra silenciosa, uma batalha contra pensamentos que sussurram medos antigos e angústias que jamais adormecem.
Sonhar? Isso se torna um capricho que já não podemos nos permitir. A ansiedade devora nossas esperanças, transformando-as em pó, enquanto lutamos para imaginar um eu mais leve, mais pacífico. Mas o que dizer a uma criança que ainda acredita? Que a vida pode ser suave como o vento em um dia de primavera? Isso seria uma mentira tão cruel quanto as verdades que carregamos. Talvez as sombras de quem nos criou não fossem apenas monstros, mas presságios de algo ainda mais sombrio, um lembrete de que poderia ter sido pior.
A inocência se dissolve como névoa sob o sol implacável da realidade. Nossos sonhos, antes brilhantes, tornam-se fábulas tolas, contos de fadas que já não têm lugar em nosso coração endurecido. Perdemos a capacidade de acreditar no amor puro, na magia de descobrir a vida com olhos renovados a cada instante. Somos sobreviventes de labirintos infernais, esculpidos para suportar dores que nem deveriam existir.
Essas dores agora ecoam em nossas profundezas, somatizadas em neuroses sufocantes, em angústias que queimam como brasa, em um caos que nos devora por dentro. Mas, de algum modo, ainda resistimos. Não por esperança, mas porque fomos moldados para suportar. Mesmo em meio às cinzas, há algo que nos impede de desmoronar completamente, como se, no fundo, uma criança ferida ainda sussurrasse: "Ainda há algo mais."
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