Carta de Despedida

Quem sou eu, senão mais um número?

Apenas mais uma cláusula de um contrato?
Quem sou eu na fila do pão?
A descartável que se viu diante do muro — de um lado, os opressores; do outro, os oprimidos chorando por dignidade básica, tentando sobreviver além do óbvio.

Penso na música dos Racionais:
O cheiro é de pólvora, eu prefiro rosasE eu que, e eu que sempre quis com um lugarGramado e limpo, assim, verde como o marCercas brancas, uma seringueira com balançaDisbicando pipa, cercado de criança

Mas até isso parece distante, quase um sacrifício inalcançável para o cidadão comum.
Mais uma vez enxergamos as correntes em nossos pés — vendemos a alma ao Diabo, vestido de Gucci e Prada.
Com colares banhados em sangue indígena e sorrisos cobertos por brilhos impostos pela estética.

Será que me vi diferente disso tudo?
Num mundo onde o valor do ser humano virou mera casualidade?
Onde as premissas religiosas cegam até os mais bem-intencionados?

Ficamos parados olhando o céu, suplicando libertação —
desse caos com gosto de rivotril,
desse infortúnio com gosto de metanol.
Envenenados por nossas próprias fugas, sagazes e cegos diante da realidade:
somos prisioneiros de um sistema insano,
sustentando meia dúzia de bandidos que se recusam a trabalhar.

Tudo pelo bem mais belo de uma Land Rover,
pelo poder disfarçado de status,
pela ganância que veste exploração entre irmãos.
Porque o jogo é sujo — e para vencer, dizem, é preciso se sujar também.
Mas ao mergulhar nesse esgoto de ratos,
você afunda na depressão moderna da “cura”.
Aquela que não te enxerga como indivíduo,
mas como mais um peão no xadrez onde a Torre já se despedaçou.

Querido RH,
saúde mental começa com mesa farta, contas pagas, lazer, dignidade e direito de viver além da sobrevivência.
Mas o pão seco serve para vocês.

Tratados como cães, vestidos de uniformes que mais parecem coleiras.
“Assine aqui: sua alma agora pertence à empresa.”
Porque seu trabalho, suas ideias e seu tempo agora giram em torno da velha roda —
a dos padrões europeus renascentistas, regados a vinhos caros e sede de água, a mais pura ironia.

Entristece ver o ser humano reduzido à ideologia,
ao marketing bem-feito, às técnicas de rapport.
Mas eu te vejo, abusador.
Sinto o cheiro de longe.
Reconheço suas artimanhas, sua mentalidade oca como um vaso de barro —
que se quebra ao primeiro toque da falha humana: o poder.

Um poder que se disfarça de hierarquia,
com costas quentes e alma fria.
Enquanto isso, mais um café barato.
Sem gosto escolhido, apenas imposto.
E os minutos do banheiro? Contados.
Silêncio, alguém pode escutar.

Senhores do engenho modernos,
se lambuzam no sabor do dinheiro,
achando-se escolhidos pela benção.
E lá está — mais uma menina.
Mais um número.
“Coitada, está depressiva.”
Mais uma que não quis seguir a narrativa.

Permissiva? Não.
Crua, desperta, subversiva.
Deixo aqui minha carta de despedida.
Não como quem foge,
mas como quem grita.

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