Vida no sono

Sinto o cheiro da minha gata. Inacreditavelmente, ela nunca tomou um banho — a não ser ao se lamber durante um longo tempo — e, mesmo assim, é extremamente cheirosa. Com minha respiração profunda, buscando o alicerce do sono, sinto as molas da cama assoviarem a cada movimento da minha barriga.
Morgana estava ronronando, o que sempre me desperta para um som tranquilizante e meditativo. Percebo meus olhos, minhas mãos, e sinto a vida surgindo dentro de mim como um sentimento. Não tem uma voz, não tem um escutar — é apenas um sentir.
Volto a perceber a posição da minha cabeça no travesseiro, com meu novo corte de cabelo. O bebedouro da gata fazia um barulho de água caindo. Apareceu um vizinho ouvindo música em seu velho radinho. Se me atentar à escuta ativa, consigo ouvir os carros na estrada. Consigo até chutar a sua velocidade. A cidade anoitece e vive, de certa forma. E o silêncio me encontra.
Há quanto tempo fico sem me manter em silêncio? Desde quando as vozes da minha cabeça decidiram me incomodar a tal ponto, que fico paralisada com tantas informações neste pequeno grande aparelho biológico chamado cérebro. Eu realmente haveria de ter enlouquecido. Talvez as vozes sejam daqueles que nunca foram ouvidos. E, de fato, nem eu poderia me ouvir.
Perdida no alce do sono, tentando conectar as ovelhinhas para a chegada do esperado descanso. Não sei se vou voar, não sei se vou à praia, mas a visualização sempre é um bom caminho para adormecer. Vejo o cemitério, vejo os mortos e me angustio. Torço pelas crianças. Deus salve as crianças.
Agradeço pela cama, pelo edredom. Agradeço pela água, pelo barulho da rua. Volto a ter a noção dos meus pequenos privilégios, que são riquezas. Torço por vida. Quero que ela volte. Ela já está aqui... interiorizei. Pois é, de todas as formas, ela ainda persiste. Mesmo quando o sono vem, e mesmo quando ele não insiste.

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