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A Castradora de Deus

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Eu não tinha vontade alguma de me formar em catequese. Sempre achei as dinâmicas das aulas chatas, irritantes, e que não me ensinavam nada além do que eu já sabia indo à missa. Tinha 11 anos de idade, e a minha preocupação era, aos sábados, assistir a Dawson's Creek e aliviar o peso do dia a dia, que era uma puta chatice. Mas, para a minha família, não. Para eles, eu deveria ter uma religião, deveria me comportar e perder o ar de moça rebelde que eu sempre tive. Eu precisava ouvir a palavra do Senhor, muito bem-quista, bem comportada e calada, como sempre, porque eram nas minhas palavras não ditas que se escondia a verdade daquele ambiente tóxico em que eu vivia. A catequese era uma forma de domar meus instintos, de me controlar. De esconder a realidade e iludir as pessoas de que éramos uma família que acreditava em Deus, e por isso éramos abençoados. Enquanto meu pai estava desempregado há anos, minha mãe fazia boa parte de todo o trabalho sujo. Inclusive comigo! Ela sempre me re

Aniversário de sobriedade

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Viciada em paixões e ilusões. Encarar a vida sóbria e crua me fez ver as experiências e a mim mesma de maneira interessante. Não existe mais band-aid. Não existe mais como tapar o machucado. Existe a minha alma, machucada, faminta, indiscutivelmente ferida em diversos pontos. Ela estava exausta de fugir. De tampar os buracos e vazios com doses de álcool, a psicodelia, da erva, o encanto do desejo momentâneo. Hoje é meu aniversário de sobriedade. A ratazana foi queimada viva diante dos meus olhos. Aquele espírito obsessor que busca migalhas, que busca o podre, o farelo das emoções. Que é nojento! Esse asco que rondava a minha volta, e que eu mesma alimentava com minhas desculpas esfarrapadas. Uma pior que a outra. Tão burras que nem sei como acreditei nelas por tanto tempo. Na realidade, o fato é que nunca acreditei. Mas a dor era tanta que, ao encarar aquilo, senti um despertar de ódio contra tudo o que remetia a essa ratazana. Um musgo se formou após a limpeza no astral. Ele invadia a

Capítulo 55: Renascimento no Caos

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No que me transformei? O que escolhi? Escolhi não ver, escolhi me esconder. Me esconder de mim mesma, fingir saber, fingir que não tinha condições suficientes. Me importar além do que deveria com coisas que não mereciam tanta atenção e ver a realidade dolorosa de uma criança gritando em pânico, de uma adolescente apavorada com o futuro, e de uma adulta cheia de certezas e soberba. Segurando tudo sozinha, porque algumas dores simplesmente não têm explicação. E, mesmo que eu, como escritora, pudesse sintetizar os movimentos da consciência, falar sobre os sentimentos sempre foi algo mais complexo. O grande Saturno retornou à minha vida agora. Sem dó, sem piedade. E me trouxe as consequências de todas as minhas ações: a falta de responsabilidade, de compromisso comigo mesma, a falta de sabedoria para lidar com a dor. Convivi tanto com ela que se tornou minha amiga, minha parceira. Encontrei um jeito fascinante de justificá-la, de torná-la a dominadora das minhas atitudes e ações. Dei a ela

Capítulo 1: Quando as estrelas apagaram

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Naquele dia, as estrelas pareciam ter se apagado antes do entardecer. Fomos para a festa na empresa do meu pai, um evento que deveria ser uma celebração, mas para mim, parecia o prelúdio de uma tempestade que eu já pressentia. Desde que me entendia por gente, sempre fui sensível às dores ao meu redor, e naquele momento, a dor de minha mãe era palpável, como uma sombra densa, pairando sobre nós. Meu pai, imerso no álcool e no ciúme, tentava preencher seu vazio flertando com outras mulheres à vista dela, enquanto eu fingia não ver. Mas, por dentro, algo em mim já sabia — aquilo era apenas o começo. Eu, com meu semblante abatido, sentia que algo estava para acontecer. A antecipação do desastre me envolvia, como um presságio silencioso, sem forma, mas inevitável. E então, quando a noite avançou, os sussurros das brigas ecoaram pelos corredores da casa. No banheiro, meu pai e minha mãe se enfrentaram como dois titãs arrastados por uma força destrutiva. Medo. O medo que senti naquela madruga

A rara arte de escutar: em meio ao ruído, quem ainda ouve?

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Ouvir, entender, escutar. Em que dinâmica estamos mergulhados, onde o tempo parece sempre escapar entre os dedos, escasso demais para ouvir o outro? Vivemos numa superficialidade que nos empurra para a pressa, com diálogos rasos e pouca disposição para escutar verdadeiramente. A realidade moderna nos impõe um ritmo frenético, onde a profundidade se perdeu e as pessoas seguem cada vez mais distantes, sem sequer tentar compreender umas às outras. É natural não querer encarar certas verdades, assim como é comum evitar o esforço de oferecer a escuta ao outro. O tempo é dinheiro, a vida corre, e, nesse fluxo veloz, deixamos passar a chance de nos entregarmos a trocas sinceras e genuínas. Percebo que o ato de ouvir perdeu a prioridade, talvez porque nem a nós mesmos conseguimos ouvir. Abandonamos a essência de uma escuta ativa e honesta. Perdemos o filtro, adicionando critérios que nos afastam do que não nos serve mais. Praticamos zero tolerância ao que consideramos irreal. Falamos para reaf

Capítulo 23: A descida ao paraíso distorcido com fritas

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A noite era mais escura do que o normal, ou talvez fosse eu que estava começando a enxergar a vida assim — uma mistura de sombras e silêncios que se entrelaçavam, sem deixar muito espaço para a luz. Estava exausta, cansada de tudo. O trabalho, a família, os relacionamentos que se esfarelavam, como com o  Judas (porque não havia nome mais apropriado para aquele traidor). Meus olhos se fixaram no copo à minha frente, um convite para o abismo, e eu aceitei. Enchi meu corpo com tudo o que pudesse entorpecer os pensamentos: papel, majis, álcool, cigarro. Era como se eu quisesse apagar não só a dor, mas qualquer vestígio de mim mesma. O reggae soava distante, como se estivesse tocando para outra pessoa, em outro lugar. Eu comi muito pouco naquele dia, o que fez com que a mistura ficasse ainda mais potente, mais rápida. Meu corpo começou a ceder, e antes que eu pudesse perceber, fui ao banheiro do bar, tropeçando nas sombras que se formavam em minha mente. Agarrei a privada como se fosse min

Carta aberta

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Querida Thaiane, Escrevo para você de um futuro onde as cicatrizes estão mais visíveis, mas o coração, mais leve. Escrevo para você que se perdeu em tantas dúvidas, que se olhava no espelho tentando entender o que em você não era suficiente. Foi por tantas palavras jogadas ao vento, por olhares que não te enxergavam, e pelo peso de um estigma cruel que você foi convencida a carregar. Quantas vezes questionei minha autenticidade, minha liberdade de ser quem sou? Me diziam para ser algo menor, algo que coubesse nos limites dos outros. Me chamaram de tantos nomes, me rotularam como desajustada, como uma mulher perdida por simplesmente existir. E eu, naquela época, aceitei. Aceitei porque, como tantas outras mulheres, fomos convencidas de que nosso valor depende de sermos validadas externamente. Ele entrou na sua vida como uma tempestade silenciosa, não te respeitou, não enxergou sua profundidade. Para ele, você era apenas uma pausa entre suas próprias inseguranças, um eco de seus desejos